A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR CONTRA O SUPERENDIVIDAMENTO E O CDC
Vimos que, 1º de julho de 2021, a Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento,
entrou em vigência, alterando o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e o Estatuto da Pessoa
Idosa, disciplinando a concessão de crédito ao consumidor e a prevenção e o tratamento do
superendividamento.
As alterações introduziram dois capítulos novos no CDC (Capítulo VI-A, dos arts. 54-A a 54-G,
intitulado Da prevenção e do tratamento do superendividamento, e o Capítulo V, dos arts. 104-A a
104-C, intitulado Da conciliação no superendividamento), a fim de prevenir e tratar as causas para
esse fenômeno, cada vez mais comum nas sociedades baseadas em consumo.
Essa nova proteção legislativa amplia ainda mais o vasto conjunto protetivo que a nossa Constituição
e o Código de Defesa do Consumidor dirigem ao consumidor nas relações de consumo, ampliando
o espectro do CDC (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990).
Devemos ter em mente que essa lei não é uma norma comum, pois, além de trazer uma série de
regras e princípios sobre as relações de consumo, ela amplia a forma pela qual as tutelas
metaindividuais são protegidas, sendo aplicável a todas as ações envolvendo os direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos e compondo o que é chamado de Microssistema Processual
Coletivo.
Perceba que o CDC é uma lei muito especial não só pela ampla proteção que ela trouxe ao sistema
jurídico mas também por ser uma lei principiológica cujos efeitos irradiam para todas as relações
jurídicas de consumo e coletivas. É preciso compreender a proteção do consumidor como um
verdadeiro sistema que influencia outras relações jurídicas no Direito.
Por isso, os princípios do CDC são tão importantes e influenciam o Direito como um todo. Vejamos
alguns deles.
Princípio da Dignidade Humana
Esse é o núcleo da proteção de todos os direitos fundamentais previstos em nossa Constituição e
tem como principal objetivo colocar a pessoa humana como principal objetivo e finalidade da
existência do Estado e do próprio Direito. Os seres humanos e a sua dignidade são a finalidade do
Direito e jamais um meio para atingimento de qualquer resultado jurídico ou econômico.
A dignidade humana vista com os olhos do direito do consumidor tem um matiz especial, o do papel
do consumidor inserido na ordem econômica e social, com a melhoria de sua qualidade de vida e a
proteção de suas relações privadas.
No caso do crédito, a Lei nº 14.181/2021 também alterou o art. 6º do CDC, prevendo como direitos
básicos do consumidor: a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de
prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservando o mínimo existencial, nos
termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;
a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, da repactuação de dívidas e
da concessão de crédito; a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal
como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.
É por essa razão que a proteção do consumidor superendividado passa a ter imensa importância,
pois essa condição pode retirar dele o mínimo existencial, a sua inclusão no mercado de consumo e
sua consequente inclusão social, levando à sua ruína financeira, social, familiar, profissional e
existencial.
Princípio da Igualdade e o reconhecimento do Princípio da Vulnerabilidade
Trata do próprio cerne, ou núcleo da proteção do CDC, a exigência de permanente equilíbrio das
partes, que são naturalmente desiguais.
Trata-se da proteção ao consumidor, ao exigir boa-fé objetiva na atuação por parte do fornecedor,
para garantir o equilíbrio entre as partes. O consumidor tem o direito à informação, à revisão
contratual e à conservação do contrato, sempre com o intuito de estar em par de igualdade nas
contratações.
É reconhecimento da desigualdade das relações de consumo, com a presunção de que uma das
partes é mais frágil jurídica, fática, socioeconômica e, em especial, quanto às informações técnicas
que envolvem o produto ou serviço.
Diante da vulnerabilidade reconhecida, o CDC apresenta um conjunto de regras que, artificialmente,
retomarão o equilíbrio entre as partes, tratando desigualmente os desiguais.
Princípio da Proteção
A desigualdade das relações de consumo é reconhecida e presumida pela CF e pelo CDC, devendo
a parte mais vulnerável, o consumidor, ser protegida em sua incolumidade física, psíquica ou
econômica.
Não é somente a regulação da relação jurídica, como ocorre no Código Civil; o CDC protege
deliberadamente uma das partes, cuja vulnerabilidade reconhece: o consumidor.
Princípio da Boa-fé Objetiva
As partes nas relações de consumo devem proceder com probidade, lealdade, solidariedade e
cooperação, e isso deve também na concessão responsável de crédito
A boa-fé objetiva é o agir ético que todas as pessoas devem ter, corriqueiramente, de agir de forma
honesta para com os demais. Sendo princípio do direito, serve como fonte da interpretação do
contrato e das relações pelo aplicador do direito. É uma regra de conduta de acordo com os ideais
de honestidade, probidade e lealdade, respeitando a confiança e os interesses da outra parte.
Esse princípio possui as funções interpretativa, integrativa e de controle, pois quem descumpre a
boa-fé objetiva comete um ilícito por abuso de direito (art. 51, IV, do CDC).
A boa-fé subjetiva, por sua vez, corresponde ao estado psicológico da pessoa em uma relação
jurídica específica, à sua intenção ou convencimento de agir de forma correta, a fim de não prejudicar
ninguém
Esse princípio ganha aspectos mais próprios na questão do crédito e do superendividamento:
Concessão de crédito responsável: as instituições financeiras e os credores devem agir com boa-fé
ao conceder crédito aos consumidores. Isso significa que eles devem avaliar a capacidade do
consumidor de pagar a dívida e não devem induzir o consumidor a contrair dívidas excessivas ou
inadequadas às suas condições financeiras.
Possibilidade de renegociação de dívidas: quando um consumidor se encontra em situação de
superendividamento, as negociações com os credores podem ser facilitadas pela boa-fé. Os
credores são incentivados a negociar de boa-fé e buscar soluções justas para a situação do
consumidor, evitando práticas abusivas.
Transparência dos contratos de crédito: a boa-fé também está relacionada à transparência nos
contratos de crédito. Os consumidores têm o direito de receber informações claras e precisas sobre
os termos e as condições de qualquer empréstimo ou contrato de crédito, de modo que possam
tomar decisões informadas.
Concessão de crédito e publicidade enganosa: a boa-fé também se aplica na responsabilidade da
forma e na veracidade e transparência das ofertas publicitárias de concessão de crédito, exigindo da
nova lei maior rigor nessas práticas.
Princípio da Confiança
A confiança é o dever de agir com lealdade para com o consumidor, agir da forma “normal” pela qual
todos esperam que uma pessoa em mesmas condições aja. Acompanha a boa-fé no sentido de agir
da forma esperada, não frustrando as justas expectativas da parte contrária diante de uma situação.
Princípio da Informação e da Transparência
Este é um dos principais pilares da proteção ao consumidor: o direito de receber informação
adequada, eficiente e precisa sobre o produto ou serviço, com amplo e simplificado acesso às suas
características, composição, qualidade e preço, bem como dos riscos que podem ser apresentados
com a sua utilização.
Esse direito à informação ganha o aspecto de dever de transparência por parte do fornecedor a
respeito de todas as condições e riscos do negócio e se apresenta como um dos desdobramentos
da boa-fé objetiva. O fornecedor não pode suprimir aspectos que retirem do consumidor o
conhecimento de aspectos que são relevantes para o negócio, impedindo, por exemplo, a prática de
escrever com letras miúdas os aspectos mais gravosos ao consumidor ou suprimir a incidência de
juros ou outros gravames.
Princípio da Facilitação da Defesa e do Acesso à Justiça
O acesso à justiça e a outros meios de solução de conflitos foi garantido ao consumidor como
facilitação dos meios de defesa de seus direitos. É isso que ocorre no inciso XXXII do art. 5º do CDC:
Art 5º Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o
poder público com os seguintes instrumentos, entre outros:
I – manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente;
II – instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do
Ministério Público;
III – criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores
vítimas de infrações penais de consumo;
IV – criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para
a solução de litígios de consumo;
V – concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa
do Consumidor. (Brasil, 1990, [s. p.])
A criação de órgãos públicos, como os Procons estaduais, a existência de delegacias de defesa do
consumidor, promotorias e defensorias públicas e a atuação de associações de defesa do
consumidor, sem dúvida, facilitaram a defesa do consumidor, não apenas lhe conferindo direitos mas
também criando órgãos de controle de sua efetividade.
os aspectos processuais, o CDC trouxe duas regras de proteção: a fixação do foro competente no
domicílio do consumidor e a facilitação de defesa com a inversão do ônus da prova, uma exceção à
regra de que a prova incube a quem alega determinado fato
Outro ponto de defesa é o reconhecimento da responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos
e serviços, dispensando o consumidor de comprovar que o dano a ele causado tenha sido causado
com culpa ou dolo, bastando para tanto a comprovação do dano à prática de um ato ou omissão
juridicamente relevante e o liame entre esses, o chamado nexo causal entre a causa (agir) e o efeito
(dano).
A inversão do ônus da provaO magistrado poderá estabelecer a inversão do ônus da prova a favor do consumidor no processo
civil quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo
as regras ordinárias de experiência (art. 6º do CDC).
Quando um consumidor afirma que está sendo submetido a práticas de cobrança indevidas ou
abusivas, o CDC pode permitir a inversão do ônus da prova para que a empresa cobradora prove a
legalidade de suas ações e a clareza das informações fornecidas.
A inversão do ônus da prova no contexto do CDC tem como objetivo proteger os direitos dos
consumidores, especialmente quando eles estão em posição de desvantagem em relação aos
fornecedores.
Isso significa que, em certos casos, a empresa ou instituição financeira terá que apresentar provas
para demonstrar que agiu de maneira justa e em conformidade com as leis de proteção do
consumidor. A esse dever de provar que não agiu como o alegado pela parte autora é denominado
de inversão do ônus da prova.
No entanto, é importante observar que a inversão do ônus da prova não é automática e, geralmente,
depende das alegações específicas feitas pelo consumidor e das circunstâncias do caso. Além disso,
o consumidor ainda deve apresentar suas próprias provas e argumentos para sustentar suas
alegações.
PONTO DE ATENÇÃO
Código de Defesa do Consumidor.
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
VIII –a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova,
a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou
quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;