Para início de fundamentação, deve-se lembrar do seguinte artigo da Constituição Federal, tendo em
vista a temática das prisões, nesses termos:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
LXV- a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; (Brasil,
1988, [s. p.])
No que diz respeito à prisão ilegal, a prática de tortura para obtenção de provas acerca de um fato
constitui ato atentatório aos princípios básicos do Direito Penal, pois, além de ser uma situação típica
de tortura prevista na Lei nº. 9.455/97, art. 1º, I, a), constitui prova ilícita e que não pode ser validada
pelo Poder Judiciário.
Em razão disso, destaca-se o novo instituto processual da audiência de custódia, que foi
implementado pelo Pacote Anticrime para analisar os meandros em que se deram a prisão em
flagrante de qualquer pessoa, atentando-se para a atuação policial de forma a coibir e identificar
eventuais abusos cometidos no ato da prisão.
Na temática infraconstitucional, o Código de Processo Penal dispõe sobre a audiência de custódia e
as medidas a serem tomadas após a sua realização, na forma do art. 310, verbis:
Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24
(vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência
de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da
Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz
deverá, fundamentadamente:
I – relaxar a prisão ilegal; ou
II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos
constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as
medidas cautelares diversas da prisão; ou
III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. (Brasil, 1941, [s. p.])
Acerca da audiência de custódia, tem-se o ensinamento perlustrado por mim no livro OAB
Esquematizado, voltado para os futuros advogados, nesses termos:
Tal novidade legal é fundamental para que não se alastrem de forma indeterminada
as prisões cautelares, devendo o Magistrado decidir se o acusado permanecerá
preso ou será solto, bem como aferindo se durante a realização da prisão houve
algum tipo de abuso de autoridade, o que justificaria por si só o relaxamento da prisão
considerada ilegal. (Gonzaga, 2022, p. 672)
No outro campo, as prisões realizadas pelas autoridades públicas devem ser permeadas por
requisitos legais e de acordo com a visão jurisprudencial. Na sistemática do art. 301 do CPP, as
prisões em flagrante são as seguintes:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I – está cometendo a infração penal;
II – acaba de cometê-la;
III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa,
em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que
façam presumir ser ele autor da infração. (Brasil, 1941, [s. p.])
No âmbito do que ocorrera na situação flagrancial, destaca-se a figura inserida no inciso IV citado
anteriormente, estando autorizada a prisão em flagrante nessa situação, classificada como sendo
um flagrante presumido ou ficto. Ocorre que a hipótese de flagrante vislumbrada foi praticada dentro
do domicílio do acusado, o que traz para a questão a análise do art. 5º, XI, da CF, nesses termos:
XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para
prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; (Brasil, 1988, [s. p.])
Ora, ainda que se trate de crime em estado flagrancial, deve ser observado o pensamento
jurisprudencial para ingresso em residência alheia, sob pena de toda e qualquer operação policial
ser possível sem autorização judicial e de forma discricionária à escolha da autoridade pública.
Foi com esse pensamento que o Superior Tribunal de Justiça cunhou a seguinte decisão acerca da
invasão de domicílio, destacando-se a necessidade de mandado judicial e investigações prévias
acerca do suposto fato, in verbis:
EMENTA
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS.
FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE.
ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO
RESTRITIVA. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. NULIDADE DAS PROVAS
OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. PROVA NULA.
AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à
inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo,
ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial.
2. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o
ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a
qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno – quando amparado em
fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto,
que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito.
3. No julgamento do HC n. 697.057/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe
3/3/2022), a Sexta Turma deste Superior Tribunal reconheceu que, embora, ao
menos em tese, fosse legítimo o ingresso em domicílio com amparo no cheiro de
entorpecentes, era necessário submeter o depoimento dos policiais a “especial
escrutínio”, a fim de aferir, com base nas circunstâncias objetivas do caso, se era
crível o relato de que foi possível sentir o odor de drogas ainda do lado de fora do
imóvel.
4. No precedente acima mencionado, a Turma entendeu que o contexto fático tornava
completamente inverossímil a versão apresentada pelos agentes de segurança, uma
vez que a quantidade de drogas, embora relevante, não era excessivamente elevada
e estava armazenada em embalagem plástica, dentro de uma mochila, no interior de
um guarda-roupas situado em um cômodo da casa, a evidenciar a completa
impossibilidade de que os militares percebessem o odor exalado fora da residência.
5. Na hipótese dos autos, policiais militares receberam informação anônima de que
o réu armazenava entorpecentes em uma residência e para lá se dirigiram. Afirmaram
que, do lado de fora, foi possível sentir forte odor de cocaína, razão pela qual
entraram na residência e, em buscas, encontraram certa quantidade dessa espécie
de droga.
6. Não houve, entretanto, referência a prévia investigação, monitoramento ou
campanas no local, a afastar a hipótese de que se tratava de averiguação de
denúncia robusta e atual acerca da ocorrência de tráfico naquele local. Da mesma
forma, não se fez menção a qualquer atitude suspeita, externalizada em atos
concretos, tampouco movimentação de pessoas típica de comercialização de drogas.
Destaco, ainda, que, ao que tudo indica, não foi realizada nenhuma diligência
preliminar para apurar a veracidade e a plausibilidade dessas informações recebidas
anonimamente.
7. omissis
8. omissis
9. omissis
10. Diante de tais ponderações, a simples menção a uma denúncia anônima, aliada
ao relato inverossímil dos policiais de que sentiram forte cheiro de cocaína vindo do
interior da residência, desprovido de qualquer outra justificativa mais elaborada, não
configurou, especificamente na hipótese sub examine – em que o contexto fático retira
a verossimilhança da narrativa dos militares -, o elemento “fundadas razões”
necessário para o ingresso no domicílio do réu.
11. Como decorrência da proibição das provas ilícitas por derivação (art. 5º, LVI, da
Constituição da República), é nula a prova derivada de conduta ilícita, pois evidente
o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a invasão de domicílio
(permeada de ilicitude) e a apreensão das referidas substâncias.
12. Agravo regimental não provido (AgRg no HC 789014 / SP, STJ)
Pelo que se constata da colacionada decisão, imperioso que exista uma investigação prévia que
comprove cabalmente a ocorrência de um crime, sendo necessário, ainda, que exista o
consentimento do morador para validar a entrada dos policiais, de forma registrada, não sendo
suficiente uma mera denúncia anônima para autorizar que a residência de alguém seja vasculhada.
Além disso, toda prova ilícita é inválida e deve ser desentranhada do processo, maculando o próprio
ato prisional, eis que o Estado não pode praticar crime para combater outro crime, como ocorre nos
crimes de tortura para obter algum tipo de informação. A par de gerar a ilicitude da prova, bem como
a ilegalidade da prisão, o Código de Processo Penal regulamenta a matéria, na forma transcrita a
seguir: “Art. 157, caput. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas
ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais” (Brasil, 1941,
[s. p.]).
No que diz respeito aos elementos da prisão preventiva, o membro do Ministério Público
fundamentou o seu pedido na hediondez dos delitos, destacando-se que não cabe liberdade
provisória com fiança.
Ora, isso por si só não autoriza a aplicação do art. 312 do CPP, com base na garantia da ordem
pública, devendo existir elementos concretos de que o acusado solto poderá voltar a delinquir, fugir
do país ou ameaçar testemunhas e vítimas. O simples fato narrado pelo Promotor de Justiça não
tem o condão de lançar um decreto prisional.
O art. 312 do CPP possui a seguinte redação:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública,
da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a
aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício
suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado. (Brasil,
1941, [s. p.])
Quanto aos requisitos da prisão preventiva, menciona-se que a sua decretação deve ser feita com
base em elementos concretos e hábeis, não sendo suficiente a gravidade abstrata do delito, no
pensamento do Superior Tribunal de Justiça:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS.
PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA QUANTO AO
PERICULUM LIBERTATIS. QUANTIDADE REDUZIDA DE DROGAS. MEDIDAS
CAUTELARES ALTERNATIVAS. SUFICIÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL
CONFIGURADO. RECURSO MINISTERIAL DESPROVIDO.
1. Para a decretação da prisão preventiva é indispensável a demonstração da
existência da prova da materialidade do crime e a presença de indícios suficientes
da autoria. Exige-se, ainda, que a decisão esteja pautada em lastro probatório que
se ajuste às hipóteses excepcionais da norma em abstrato (art. 312 do Código de
Processo Penal), demonstrada, ainda, a imprescindibilidade da medida. Precedentes
do STF e STJ.
2. É cediço que a gravidade abstrata do delito, por si só, não justifica a decretação
da prisão preventiva. Precedentes.
3. No caso, embora indicado o risco de reiteração delitiva, não há registro de
excepcionalidades para justificar a medida extrema. A quantidade de droga
apreendida não se mostra expressiva (2,9g de crack em 29 pedras) e não há qualquer
dado indicativo de que o acusado integre organização criminosa, contexto que
evidencia a possibilidade de aplicação de outras medidas cautelares mais brandas.
Constrangimento ilegal configurado. Precedentes.
4. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no AgRg no HC 798389 / SP)
Além disso, o fato de a Lei nº 8.072/90 vedar a liberdade provisória com fiança não autoriza a prisão
preventiva por si só, pois o já citado art. 310 do CPP autoriza a liberdade provisória sem fiança, não
sendo essa vedada pela Lei dos Crimes Hediondos.
Dentro dessa análise legal e jurisprudencial que deve ser feita a prisão em flagrante, eis que o tema
demanda um profundo conhecimento acerca da matéria.
Um detalhe relevante é que, nos crimes dolosos contra a vida, como ocorre com o homicídio, a
competência para julgar todos os delitos conexos é do Tribunal do Júri, daí sendo relevante direcionar
a peça processual para esse juízo específico, na forma do art. 78, I, do CPP.
PONTO DE ATENÇÃO
Toda e qualquer prisão deve ser feita com base nos princípios
constitucionais básicos, devendo, ainda, ser observados os
regramentos infraconstitucionais acerca da matéria.